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 TESTES DE ANCESTRALIDADE SÃO COMO "ASTROLOGIA GENÉTICA"?

  Texto do Dr. Eduardo Tarazona sobre o artigo da Dra. Natalia Pasternak
  Publicado em 24/02/2022


Natalia Pasternak é uma microbiologista e excelente divulgadora científica, que tem explicado aos brasileiros a ciência por trás da pandemia de COVID-19, denunciando com coragem o negacionismo científico. Ela publicou recentemente um artigo de opinião intitulado Astrologia genética1, sobre um tema que não é a especialidade dela: os testes de ancestralidade genética oferecidos por empresas diretamente ao consumidor. Este artigo levanta questões e críticas relevantes, mas contém erros conceituais que é importante que sejam esclarecidos.


O que é ancestralidade genômica?
Ancestralidade genômica é a inferência da origem geográfica dos nossos ancestrais. Por exemplo, há 4 gerações, um brasileiro tinha 16 ancestrais (tataravós) que provavelmente viveram entre os séculos XIX e XX. Se 4 deles eram italianos, 4 alemães, 4 descendentes de escravos africanos, e 4 indígenas, nossa ancestralidade é aproximadamente 25% (4 de 16) mediterrânea, 25% norte-europeia, 25% africana e 25% indígena. O nosso DNA tem informação sobre a nossa história genealógica, que os testes de ancestralidade genômica usam para inferir as porcentagens dos nossos ancestrais de diversas regiões geográficas. O geneticista italiano Luca Cavalli-Sforza, pouco depois da II Guerra Mundial, foi o pioneiro em entender que as informações genéticas podiam ser usadas para inferir a história das populações. Nos últimos 20 anos, os avanços na genética nos permitiram ler com grande resolução nosso DNA, tornando possível desvendar não só a ancestralidade das populações, mas também de cada indivíduo2 e até as origens continentais de cada fragmento do nosso genoma (Figura 1). Nas populações miscigenadas como as brasileiras, nós, geneticistas, estamos atualmente usando essas informações para descobrir variantes genéticas de origem europeia, africana ou indígena, que influenciam a probabilidade de desenvolver doenças, como a obesidade3. Existe um exemplo recente em que a partir da determinação da ancestralidade individual, foi descoberta uma variante genética que tem uma influência maior na chance de desenvolver leucemia linfoide aguda em indivíduos com mais ancestralidade indígena4. Em outros casos, alguns tipos de variantes genéticas têm um efeito maior ou menor em doenças como câncer de pulmão ou Alzheimer, dependendo se estão localizadas em um fragmento do genoma de origem africana, europeia ou indígena5. Estes exemplos ilustram a importância crescente das inferências e testes de ancestralidade como uma ferramenta científica na genética e para a saúde.


O fato que só o 0,1% do genoma humano seja diferente entre indivíduos da nossa espécie, significa que existe pouca informação para inferir a ancestralidade genômica?
Não. O genoma humano tem aproximadamente 3 bilhões de unidades ou "letras de DNA". O 0,1% do genoma significa 3 milhões de "letras de DNA", o que ainda é muita informação para que os geneticistas infiram corretamente a história das populações e dos indivíduos. Assim, é possível saber as porcentagens da ancestralidade genômica de um latino-americano com origem no norte-europeu, sul-europeu, médio-oriental, leste da áfrica, áfrica centro-ocidental, povos Bantú do Sul/sudeste da áfrica e indígena6. é verdade, por outro lado, que se queremos atingir uma resolução geográfica maior (países, por exemplo), aumentam as chances de errar.


Nosso DNA diz alguma coisa sobre nossa cultura, tradições e histórias de vida?
Exagerar o papel do DNA na nossa cultura, tradições e histórias de vida é praticar o determinismo genético, que deve ser combatido por ser conceitualmente errado e nocivo. Porem, a informação do DNA está correlacionada com nossa cultura, tradições e histórias de vida, ou seja, não são fatores independentes. Por exemplo, eu sou peruano, e tenho 50% de ancestralidade genômica indígena (os brasileiros normalmente tem menos de 10%) e quase 50% europeia (Figura 1), o que resgata a história do Peru, que tinha (e ainda tem) populações indígenas muito numerosas quando chegaram os europeus nas Américas em 1492. Não só essa ancestralidade genômica indígena está correlacionada com a minha cultura, mas também a música que gosto e a minha alimentação. Essa correlação entre genética e cultura é esperada, porque o DNA e a cultura são transferidos de pais para filhos. Um dos resultados mais interessantes de há 30 anos na genética foi que as populações humanas que eram geneticamente mais próximas, falam também línguas mais similares. Seria errado (determinismo genético) interpretar esse resultado como sendo a genética um fator determinante da língua que falamos. Mas é, também, errado negar que a genética, assim como a língua que falamos, estão correlacionadas, uma vez que ao longo da história da humanidade, os pais, além de transmitirem seu DNA aos filhos, também os ensinaram a falar.


Figura 1. A esquerda, a ancestralidade continental (interior do gráfico) e subcontinental (exterior do gráfico) do autor, inferida a partir de ~300 mil variantes genéticas, e a partir de comparações com indivíduos europeus, africanos e indígenas. A direita, a origem de cada fragmento do genoma do autor (ancestralidade local).


Os testes de ancestralidade que as empresas atualmente oferecem tem problemas?
Frequentemente sim, mas a causa não é que a genética seja incapaz de inferir corretamente a ancestralidade dos indivíduos. Em alguns casos, a necessidade de automatizar as análises para uma enorme quantidade de clientes das mais diversas origens, dificulta que os métodos de análise mais apropriados para cada indivíduo sejam aplicados. Por exemplo, é comum que brasileiros sem nenhuma ancestralidade asiática recebam de empresas a informação que tem ancestralidade asiática. Entretanto, a ancestralidade asiática estaria se confundindo com ancestralidade indígena americana (porque do ponto de vista evolutivo, os indígenas americanos derivaram dos asiáticos). Nesse caso, as empresas estão aplicando um modelo de análise que pode ser adequado para um cidadão dos Estados Unidos, mas não para um latino-americano miscigenado, que requer um modelo de análise diferente.


Os testes de ancestralidade podem fomentar o racismo?
Na história da ciência, alguns geneticistas, antropólogos físicos, médicos, linguistas e entre outros cientistas, têm usado ideologicamente e de forma errada informações da ciência para justificar o racismo. Por isso, os cientistas e os fornecedores de testes de ancestralidade devem ter responsabilidade social, ser cientes desse perigo e divulgar com vigor o fato que não existe justificativa científica para o racismo. Parte dessa responsabilidade é explicar corretamente os conceitos. Quando fazemos um teste de ancestralidade lemos e interpretamos nosso DNA, que é parte da nossa identidade, como nossa cultura. O caminho não é ocultar as diferenças (que existem), mas conhecer melhor a diversidade cultural e genética entre populações e indivíduos, principalmente porque, injustamente, conhecemos muito mais sobre a cultura e a genética dos europeus, mas muito pouco sobre os outros povos e indivíduos da humanidade.


As empresas que fornecem serviços de ancestralidade podem e devem usar corretamente os conceitos da genética, mas não se deve combater uma suposta pseudociência (como a astrologia) usando conceitos errados de uma ciência (como a astronomia).

Referências

  1. https://blogs.oglobo.globo.com/a-hora-da-ciencia/post/astrologia-genetica.html
  2. Soares-Souza G, Borda V, Kehdy F, Tarazona-Santos E. 2018. Admixture, Genetics and Complex Diseases in Latin Americans and US Hispanics. Current Genetic Medicine Reports, v.6, p.208-223, 2018. DOI:10.1007/s40142-018-0151-z.
  3. Scliar MO et al. Admixture/fine-mapping in Brazilians reveals a West African associated potential regulatory variant (rs114066381) with a strong female-specific effect on body mass and fat mass indexes. Int J Obes (Lond). 2021. 45:1017-1029. doi: 10.1038/s41366-021-00761-1.
  4. Qian M et al. Novel susceptibility variants at the ERG locus for childhood acute lymphoblastic leukemia in Hispanics. Blood. 2019. 133(7):724-729. doi: 10.1182/blood-2018-07-862946.
  5. Carrot-Zhang J et al. Genetic Ancestry Contributes to Somatic Mutations in Lung Cancers from Admixed Latin American Populations. Cancer Discov. 2021. 11:591-598. doi: 10.1158/2159-8290.CD-20-1165.
  6. Gouveia MH et al. Origins, Admixture Dynamics, and Homogenization of the African Gene Pool in the Americas. Mol Biol Evol. 2020. 37:1647-1656. doi: 10.1093/molbev/msaa033


 Texto escrito por:


EDUARDO TARAZONA-SANTOS, PhD (UFMG)
Biólogo, Doutor em Bioquímica pela UFMG e em Antropologia pela Universidade de Bologna. Líder do grupo LDGH
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